25.1.15

Literatura e fotografia: o anseio pela apreensão do instante

FONSECA, Pedro C. L.; SOUSA, Fábio D’Abadia de. Literatura e fotografia: o anseio pela apreensão do instante. SIGNÓTICA, v. 20, n. 1, p. 149-174, jan./jun. 2008. Disponível AQUI

No artigo, os autores Pedro Fonseca e Fábio D’Abadia de Sousa abordam as inter-relações entre literatura e fotografia, sob a perspectiva de observar os principais pontos em comum em meio às duas manifestações artísticas. Para isso respaldam-se na afirmação de Susan Sontag (2004), de que a fotografia é a arte que mais se aproxima da poesia.
Considera-se uma dádiva da fotografia a possibilidade de fixar momentos da existência. Logo após a sua invenção, ocorreu a ideia de que o real e o instante podiam ser apreendidos, numa forma de representação próxima à percepção. Rosalind Kraus em seu texto “O fotográfico” (1990), distingue o status da percepção e representação, definindo que o primeiro seja mais valorizado, uma vez que há o contato com o real, enquanto que o segundo é sempre uma recriação do real por meio de signos. Assim, com a fotografia, “[...] teve-se, pela primeira vez, nas artes da representação, a idéia de que o real e o instante podiam ser apreendidos, numa forma de representação que se aproximava bastante de uma percepção. [...] ocorreu uma sensação de vitória contra um dos fenômenos mais misteriosos da vida: o tempo.” (p.151)
Nesse contexto de surgimento da referida linguagem artística, ocorreriam mudanças e configurações no meio artístico após a Primeira Guerra Mundial. O Modernismo provocou o uso de linguagens de fragmentação (estilo inaugurado pelos simbolistas), reflexo de um homem espantado com rápidas mudanças culturais resultantes da industrialização e das guerras. “O tempo se converte numa série de instantes fragmentados, e o sentido de continuidade cede lugar à descontinuidade.” (SHEPPARD, 1989, p.266 citado por FONSECA; SOUSA, 2008, p.152)
Com a necessidade de atender ao “tempo fragmentado”, solicita-se “[...] uma nova linguagem para exprimir o estranhamento do contato do homem com o real da modernidade, quando as palavras convencionais já não são mais suficientes para dar vazão aos sentimentos de estarrecimento diante da solidão que cresce, proporcionalmente, ao aumento da população das cidades e ao avanço das máquinas nos mais diversos setores.” (p.152-3)
Décadas posteriores, no meio literário, Fernando Pessoa e Clarice Lispector falavam acerca da “exigência de recursos múltiplos para a expressão da complexidade dos sentimentos humanos.” (p.153) Em seu livro “Água viva”, a autora relaciona a imagem e a palavra através de uma narradora, que é escritora e pintora e reflete as possibilidades de expressão entre a pintura e a palavra escrita e falada.
Nesse contexto a personagem-narrador dispõe do conceito do instante-já: “a fração de segundos em que a vida se manifesta e que é impossível de ser apreendido; é algo que pertence à quarta dimensão [...].” (p.154) Esse conceito de Lispector dialoga com a fotografia; o fascínio que contorna esta linguagem e a literatura justifica-se pela ambição de ambas de reproduzir o instante de modo convincente. As similaridades entre elas vão mais além, pois as ferramentas que empregam se aproximam e complementam: enquanto na literatura a palavra converte-se em imagem, na fotografia as imagens geram palavras.
“Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra [...] § O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num caleidoscópio [...]. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.” (LISPECTOR, 1980, p. 14-17 citado por FONSECA; SOUSA, 2008, p.154)
Foi o Modernismo o momento em que ficou mais clara a relação da fotografia e literatura, mas segundo Susan Sontag, isso já acontecia, pois Honoré Balzac foi um dos pioneiros da escrita literária com características fotográficas; ocorre em sua obra a antecipação da forma característica da percepção, estimulada pelas imagens fotográficas. Tal característica gera uma descrição excessivamente minuciosa comparada à fotografia, “o detalhismo da descrição apoia-se no detalhismo e no instantaneísmo que lembram imagens fotográficas.” (p.158)
Há também visualidades em cenas descritas em “Ulisses” por James Joyce, uma vez que este alegou que as palavras convencionais, usadas no dia-a-dia, “[...] são insuficientes para expressarem o turbilhão de imagens que pode se formar em nossas mentes.” Assim, o autor lança mão de uma maneira mais imagética de arranjar as frases e vocabulário, aproximando-se da “[...] fotografia de cunho artístico, a que ressignifica a realidade, ou seja, mostra além do que pode ser visto num primeiro momento.” (p.158)
Segundo Auerbach, a problemática de apreensão do instante também se verifica na poesia, uma vez que esta “permite, talvez com mais maestria, em virtude da sua natureza formal mais fragmentária, investigação em torno dessa propriedade do instante.” (p.164) A poesia é um tipo de mensagem linguística que valoriza tanto o significante quanto o significado – tanto a visualidade da palavra, quanto o seu sentido são elementos de equivalente importância.
Mais um ponto de convergência refere-se ao aspecto teatral da fotografia e sua capacidade de criar cenas (ideia defendida por Roland Barthes e também Clarice Lispector).
Os autores comentam no texto a poesia de Cesário Verde, o qual inaugura na literatura portuguesa o “realismo fotográfico”, a poesia sempre frente à realidade, fria e objetiva. “A busca pela fixação do instante, como uma das principais ambições da arte impressionista, levou Auguste Renoir a declarar que o papel desse tipo de pintura é igual ao do andarilho casual que, enquanto passa, capta com o olhar este ou aquele fragmento de vida.” (p.169-170)
Opina-se que, dentre as influências da fotografia, uma delas diz respeito à provocação de escritores para a necessidade de dedicar mais atenção ainda à realidade, apurando sempre o olhar para apreensões do cotidiano – em mais um ponto o fazer literário a aproxima-se do fotográfico. “Para o senso comum, talvez, o que interessa à poesia é a realidade interna das pessoas, sendo que, para a fotografia, sobraria apenas o mundo exterior. Entretanto, são os fragmentos das múltiplas realidades que constituem a matéria prima dessas duas modalidades artísticas.” (p.170)

Referências
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2002.
KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 1990.
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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